domingo, maio 17, 2009

'Agora tenho medo.' dizia. Tremia como a asa fria de um pássaro; pousava devagar no poleiro, vinha cheio de sombra e entrava nos quartos com uma humidade apenas presa a fios muito finos de silêncio. Pensava: 'estarei cego?'. E com estas perguntas caminhava nas ruas como um homem: este animal que chora pelo caminho dormia no escuro e era miserável porque não sabia para onde queria ir. 'Para onde vou?', questionava incessantemente. E tinha a sensação de que algo o empurrava estrada dentro. dentro da ira. Olhava com atenção: havia tempestades, lamentos e uma mulher com o coração azul que se despia nua no quarto. 'Agora tenho medo', repetia. Caminhava sozinho nas ruas. Tinha medo. Era apenas uma criança. E atravessando docemente o tempo aparecia ensanguentado perante si mesmo. 'Quem é este que aqui está?', perguntava enquanto soluçava na substância doente daqueles dias. Fechado numa casa sem móveis. Sempre fechado, naquele deserto. Fechado em si próprio, mesmo quando caminhava nas ruas abertas para o céu. Todas as árvores gemiam dentro do seu coração; todas as pessoas que o atravessavam eram feitas daquela carne impossível, daquela opacidade intransponível das coisas. 'Para onde vão?', e abria os olhos como grandes pétalas vivas. Tanta carne, pensava. Tanto sangue, tanta carne, repetia. Tantos ossos. Olhava à sua volta e com isto trespassava-o uma dor e um espanto muito negro quando por dentro de tudo apenas via a mesma morte, a mesma carne feita de tripas, daquela finitude que era difícil de tolerar. Atravessava os mananciais da noite, abria bosques na memória quando se deitava nos lençóis ao crepúsculo dos olhos. E mais tarde, fervia entre sonhos perante a fadiga e a chuva na distância dos horizontes. Lá fora, entre o estrume da carne dos homens e o ar ouvia o relâmpago claro de um pastor ou outro na humidade da manhã esverdeada e dedicada à luz. A vizinha de brancos braços lavava a roupa no tanque entre esta luz e água. E eu, fechado em mim sentia o mesmo medo de ontem. Todos os dias era o mesmo. E lá fora, o mesmo pensamento, a mesma carne. tudo tão podre com os seus líquidos que se derramam na tormenta da vida. E tudo isto dedicado ao esterco, à morte. ao vazio.

segunda-feira, maio 04, 2009

Durante a noite, o principezinho levantou-se da cama. Caminhava pela casa vazia e às vezes cismava frente às janelas que tinha deixado abertas. todos os dias era o mesmo. Deixava tudo aberto porque se sentia abandonado. Era uma grande casa em ruínas. como uma criança, erguia os olhos ao céu e nessa noite ouvia lá fora o pranto dos campos. Debaixo da sua pele chorava a sua mãe. Sentada no sofá com todo o seu corpo a tremer. todo o seu corpo a chorar. não era só o rosto, ou os olhos. mas os braços. o abdómen, o tórax, cada braço e cada perna. todos choravam num coração pesado. nessa noite o principezinho olhou pela janela fora com os olhos muito abertos e todo ele era uma escuridão enorme por não saber onde terminava aqueles frutos tão nocturnos da vida. a casa chorava, sentia. toda aquela janela chorava frente à noite. toda aquela casa envelhecia durante o tempo. aquela casa. lembro-me de pensar como aquele telhado de duas águas se abraçava tocando-se ao de leve apenas no topo. dentro de si, o principezinho estava em silêncio. trazia em si aquele choro das uvas que apenas pendem para a terra na vinha. aquele mesmo choro dos presentes nunca oferecidos, daqueles presentes para sempre esquecidos. para sempre ausentes no amor. o principezinho repetia para consigo mesmo: «um dia morrerei», e voltava a repetir, «tudo isto que eu vejo é transitório, todo este nada que eu sou é absolutamente transitório». e com este dito inclinava-se cada vez mais para o silêncio como os vértices daquela casa, como cada vértice daquela janela sangrenta, fechada na prisão da melancolia e no coração cada vez mais cansado daquelas ruínas que dormiam sofrimento dentro.

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

quinta-feira, janeiro 08, 2009



Quando chego ao quarto quase ainda perdido no rumor das ruas pouso devagar o meu corpo. debruçado na cama cai-me a pulseira em direcção à mão direita. Tenho o cabelo e a barba desalinhados. Por dentro, tiro as mãos dentro da terra e deixo de escavar a memória inquieta nos farrapos do tempo. Deixo os pulsos abertos sobre os frutos do sono e no cimo desta mansidão de calor só humano sou só eu que adormeço. Penso em ti. Assim. Sempre nesta distância que escala o anoitecer. Debruço-me sobre a chuva. caio sobre cada ruga da cama desfeita e sou um animal que se afoga não buscando nenhuma margem na noite lenta. Caio. esqueço a dor. e lá fora entorna-se o perfume de uma mulher ao balcão de um bar. sou esta caixa submersa e longe do som. Inclino-me sobre este rio dobrado sobre o meu peito. Caio sobre a luz. oiço. Pouco me importa. Pouco me importam as palavras e o espaço visível que se fecha entre as minhas pálpebras. este fumo nas veias. quando fiz 27 anos. Quando fiz 27 anos. desenhando. apagando. esquecendo-me. batendo os ombros nas asas como se fugisse de mim mesmo. quando fiz 27 anos. adormecia. pensava em ti e eu era aquele vento suspenso na ternura. quando te abraçava deitado. aos golpes. onde se apagavam devagar todos os meus nomes. a teu lado. no amor. escrevendo-me ao longe. apagando devagar o meu corpo virado para o lado da tranquilidade. Quando chego ao quarto anoitece na cama. caíram-me duas lágrimas dos olhos. tirei, tiro a minha camisola azul e de lã. é Inverno no dia em que faço 27 anos. penso em mim. tenho este sabor das pedras redondas e invisíveis debaixo dos rios. sou um barco que se afasta com a noite a respirar de amor nas margens. e aqui não tenho mais nada que lembrar. esqueço. adormeço. não sei o que é o Homem no mistério do tempo. não sei o que é o Homem e o seu sentido. não sei. perco-me nas ruas. aos intervalos. adormeço. sentas-te ao meu lado. vigias-me a crescer dentro deste quarto. e eu. eu não tenho mais palavras para arder.

segunda-feira, dezembro 29, 2008

domingo, dezembro 21, 2008


António Lourenço, 21 de Dezembro de 2008.

Na Faculdade tive um Professor de Ética que por mais tempo que eu viva nunca esquecerei. O meu Professor de Ética ensinou-me como ninguém que só o ser que deve ser tem poder. Que o fenómeno Vida é justamente esta ilusão breve do poder de narrativa: qualquer ser vivo - desde o unicelular ao complexo organismo de um animal - é um processo sistemático de auto-manutenção das suas fronteiras. Lembro-me das suas aulas. De como transpirava de olhos fechados enquanto as palavras lhe saíam da boca como por magia. Tudo é um processo, dizia. Um mecanismo ingénuo de persistência, assegurava. A mente não é diferente da matéria e ainda assim não se pode dizer dela que seja matéria, nem sequer se pode dizer dela que seja uma propriedade da matéria; matéria, mente e vida são feitas da mesma não-matéria que constitui todas as coisas. Uma sociedade, qualquer sociedade, é um fenómeno de emergência auto-sustentado entre populações de organismos interdependentes e comunicantes - tal qual um organismo é de igual modo um fenómeno emergente que aparece ao existir entre populações de células interdependentes. Lembro-me de cada uma das suas aulas. Lembro-me que depois delas durante vários anos sabia de cor os dias e os temas correspondentes de cada aula que ele deu. Lembro-me de si muitas vezes. Comecei a imaginar; a pensar e a ver narrativas de vida enormes. Se me abeirava de um rio muitas eram as vezes que me perdia apenas só por pensar como aquele rio era um sistema complexo de vidas dentro de vidas, de sistemas e sub-sistemas inter-penetrados na brevidade do tempo e daquele espaço. Com o tempo, o Professor foi crescendo dentro de mim. Queria-lhe dizer isto, porque queria que sentisse orgulho de mim. Queria dizer-lhe que o Professor fez de mim o homem que sou. Este que veste a gravata para o trabalho todos os dias e sorri e gosta de ser simpático com todos os seres. Eu que falo com todos os animais e que sei falar também com o céu e com a terra só porque sei que são o mesmo que eu. Só há um fenómeno real de existência que é este: o Universo. Dentro dele há apenas regiões maiores ou mais pequenas, mais dependentes ou menos; mas todas interagem com todas em laços e redes de causalidade que só por inércia ou ignorância nossa se poderiam resumir às meras correntes de causa-efeito. Mentes, sociedades, átomos ou ideias são coisas com a mesma discritude que lutam pela sua coerência, estabilidade e pela sua história num tempo que também as perfaz. Tudo isto mudou para sempre a minha vida. Lembro-me de ter olhado para cada uma das fotografias que tinha em minha casa naquela altura e de sentir que tudo o que até então tinha por intelectualmente assegurado estava profundamente errado. Lembro-me de pensar, por exemplo, que em cada uma daquelas fotografias eu não estava ali realmente.

Cada fotografia provava que eu não existia. Se por um lado sou um processo sistemático de auto-manutenção, por outro lado estou em constante fluxo e nenhum átomo que há uns anos me constituia faz hoje parte de mim. Lembro-me de sentir isto com sangue. De pensar em mim como uma nuvem, um sistema de evaporação e condensação de água que vai despertando outros processos no seu suposto exterior. Comecei naquele tempo com pensamentos cada vez mais estranhos; a ser verdade tudo isto não haveria 'coisas' tal qual os esquemas comuns de consciência nos habituaram. Conforme as gotas caem no chão assim aquecem, re-evaporam e de novo, chegadas ao céu, condensam e o processo continua enquanto a sua eternidade durar. Eu próprio, pensava, enquanto olhava as minhas mãos, eu próprio sou um conjunto de células especializadas e não há grandes razões para referir em mim um indivíduo ou por outro lado uma colónia de indivíduos. Com o tempo comecei a desacreditar, a deixar de ter fé na existência de objectos discretos perdidos para o vazio de uma completude independente. Tudo o que eu vejo faz parte da mesma superficíe - e não é uma colecção de coisas cindidas por separações objectivas. Eu vi tudo cada vez mais como uma superfície contínua; depois adicionava-lhe o ar, o mar, as rochas e a terra debaixo delas como um volume contínuo. Com o tempo adicionei a tudo isto eu próprio. E aí eu vi radicalmente que não se tratava de uma 'superficíe' ou de um volume porque não poderia haver nada fora dele. Lembro-me daquelas aulas de Ética ainda hoje. Ainda hoje estudo Filosofia por tudo isto. Lembro-me de ter chorado nelas. Muito devagar e em silêncio porque naquela altura tinha de vergonha de dizer, de ouvir, de olhar, de estar aberto e atento ao que me era dado à presença.


Era uma vergonha do que é gratuito. Com aquele Professor aprendi também que não existe para mim outra forma possível de eu ser senão esta: aberto e dado ao cuidado de tudo o que se me dá na forma diária da ternura. Lembrei-me de si naquele dia. Naquela noite em que me telefonaram para o telemóvel quando por acaso estava à beira de entrar no cinema para ver um filme tonto. estou com contracções de cinco em cinco minutos, dizias. eu menti-te naquele dia. sabes? menti-te porque era o mais nobre a fazer. e fui ter contigo para te levar à maternidade porque para mim é um orgulho fazer parte da tua história, da nossa história, deste tempo, deste mundo e deste Universo com todas as suas dores. Lembro-me de pensar no meu Professor de Ética no caminho escuro pela estrada fora para ir ter contigo com os quatro piscas ligados. é urgente cuidar, pensava. lembro-me de por milagre tudo ter corrido bem. lembro-me de pensado que naquele dia tinha nascido outra mãe. que tinha nascido outro filho. que tinha nascido outra história dentro de uma história já tão longa como o universo. que tudo nasce dentro dentro de tudo. e que a tua barriga era uma metáfora da gravidez de toda esta recapitulação tão primitiva. Este Universo que se enamora de si mesmo, pensei. É tão belo. Este Universo que se volteia em pedaços de amor e se dispersa e desagrega em redes sistemáticas de vida e de pequenos destroços de morte ainda assim na mesma corrente do fenómeno vida. Lembro-me daquilo que o Professor disse naquela aula; que tinha sido a vida a inventar a morte e não o contrário. Lembro-me de ter dado as boas vindas ao António Lourenço e de ter visto as duas avós dele muito contentes. De ter visto um pai nascer naquela noite. De ter visto aquele hospital como um imenso ser vivo e de eu próprio ter recuado dentro da minha cabeça aos tempos em que andava pela Faculdade onde havia uma grande árvore plantada no seu centro.

Lembro-me de pensar nela como um grande animal vivo que abanava o dorso ao vento com as folhas. Lembro-me de ter visto a terra debaixo daquela árvore; vi-a ali mesmo no meu coração, nas minhas mãos e na luz eléctrica que banhava aquele hospital naquela noite. Foi graças a si que eu vi que a luz é feita também de terra. Que tudo é feito da mesma não-coisa. Que a matéria é apenas uma pequena região da forma; como o hardware é uma simples variedade do software: não existe, não há nada a que se possa essencialmente chamar de 'coisa'. Tudo são padrões de auto-manutenção em sequências sistemáticas de causas e efeitos múltiplos. O Universo não é feito de 'coisas' mas de eventos e relações. E que o ser vivo é aquele tipo de ser que deve ser - e que o ser vivo é aquele a quem é dado a benção de estar obrigado a tudo, a todos os seres e a toda a história. Lembro-me de ter chorado naquele corredor. De me ter ajoelhado por dentro por me sentir tão livre por estar paradoxalmente tão obrigado a tudo aquilo. De me sentir antigo e herdeiro de uma tradição que não é nem centenária nem milenar, mas que durou, dura e durará todo o tempo do Universo. Sinto-me pequeno, hoje. Tão pequeno, mãe. E sei que vou descansado contigo. Que tu conduzes, mãe. Que a esta hora já olhaste para mim dentro do crepúsculo desta estrada e que me vais proteger tanto quanto tudo pode ser protegido na sua fragilidade constitutiva. Sei que olhas por mim. Que não te distrais nunca. Que cada ser que eu sou, sou-o no modo da fragilidade extrema e de uma vulnerabilidade que faz nascer em ti o tal imperativo da responsabilidade que obriga à consideração pelo todo. Lembro-me de si como eu quero lembrar. Foi aquele que me fez chorar através de uma ternura genuína e transbordante. Lembro-me de si hoje. Lembro-me de ti. Por me teres mostrado a lei de que tudo é tão belo e breve.

segunda-feira, dezembro 15, 2008